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ESTADO DE DÚVIDA

Atualizado: 24 de jul. de 2020

Por: Raphael de Jesus


Nicholas Klüppel andou dois quilômetros em seu quarto, intercalando partidas de xadrez na internet com suas preocupações.


O quarto era pequeno, de 15m². A cama box, recostada à parede pela cabeceira, formava, sobre um chão de taco em tiras de marrom e ocre, um corredor da porta até a parede. Num canto, o espelho do armário refletia uma estante repleta de livros, em sua maioria, sobre enxadrismo. E no vão entre a parede e as cortinas fechadas, um pernilongo observava atentamente, esperando pela hora da ceia.


Sobre a cama havia um laptop exibindo uma partida contra Krim$on, jogador das Filipinas, que contabilizava um rating de 1468. Não era um iniciante, mas também não era grande coisa, o suficiente para manter Nicholas ocupado. Para um amador, Nicholas não era mal jogador. Seu rating era 1438 e vinha em franca ascensão, desde que retomara os estudos a sério. Mas ele não entendia o porquê de sofrer tanto nas mãos dos filipinos. Talvez fosse porque optassem por aberturas pouco convencionais, como a orangotango, ou porque talvez ele fosse um pouco afobado, tentando sempre mobilizar suas tropas para o ataque derradeiro, sem antes neutralizar os planos do oponente ou solidificar sua posição. 20. d6 Após trocar os bispos e uma das torres com Krim$on, Nicholas, que estava com as brancas, tinha uma boa posição. Seu rei estava seguro, possuía dois cavalos a postos e uma dama que protegia o peão passado em d6, enquanto mirava o cavalo das pretas na h7, que ao lado de uma dama na f6 e uma torre na e8, protegia um rei acuado. A I.A. do site informava que a partida se tratava de um Gambito Islandês-Palme, linha 4.dxe6 Bxe6 5.d4, da variante moderna da Defesa Escandinava, a qual Nicholas nunca tinha ouvido falar. Ainda que quisesse ganhar, estava jogando apenas por instinto. 10 minutos haviam se passado para cada lado e ele começava a perder o interesse pela partida, voltando seus pensamentos para questões pessoais. Nicholas era relativamente encaminhado: bacharel em design digital, tinha um emprego modesto de motion designer em uma produtora de vídeos, contribuía com as contas da casa, não bebia, frequentava a igreja vez ou outra e até lavava a louça. Entretanto, vivia com a mente atarantada, sem conseguir decidir seus próximos movimentos. Desde os 15 anos de idade ele alentava o desejo de ser um enxadrista profissional e ostentava uma pequena biblioteca sobre o assunto, formada ao longo de muitos natais e aniversários. Lera todos os livros pela metade, retendo apenas os fundamentos táticos do jogo e sua história. História essa que se tornou para ele uma dor, pois a maioria das lendas do xadrez já era brilhante na mesma idade em que ele começara, especialmente o atual campeão mundial, Magnus Carlsen, que aos 13 anos empatara com o grande Garry Kasparov. E hoje, aos 24, Nicholas mal conseguia vencer um mero filipino. Como pode alguém encontrar a vocação e o brilhantismo aos 13 anos? Na mesma idade ele só pensava em animês e futebol. Mesmo em uma posição desfavorável, ele persistia nesse sonho como se fosse um assunto mal resolvido. Estava estacionado em seu aprendizado e se perguntava inutilmente no que deveria fazer para melhorar. Poderia tentar ao menos terminar de ler aqueles livros, mas sentia o impulso de progredir em sua profissão, pois ganhava um salário mínimo e ainda dependia dos pais para quase tudo. Mesmo assim, o motion design não era para ele mais do que uma obrigação, a que melhor se encaixou em suas circunstâncias, a partir de sua formação. E enquanto andava por aquele quarto, ficava em sua mente repetindo este dilema insistentemente. 20…Td8 Krim$on percebeu a ameaça que o avanço daquele peão representava e começou a mobilizar seu contingente para refreá-lo. Sua dama em f6, além de reforçar a ameaça ao peão em d6, também poderia combinar esforços com o cavalo em h7, podendo avançá-los para explorar a falta de desenvolvimento das brancas no canto direito do tabuleiro. Após verificar o movimento, Nicholas passou a se ocupar de outros dilemas recorrentes. Sua vida amorosa, por exemplo, estava fora de ordem. Há dois meses ele vinha tentando sair novamente com Lorena, uma garota que ele conhecera em um festival de cinema, mas só obteve desculpas como resposta. Sem ação, não sabia se deveria insistir em retomar o contato ou partir para a próxima. Ela era sua melhor opção no momento, já que ele era um rapaz reservado e que não conhecia muitas pessoas, passando a maior parte de seu tempo livre em casa. E para completar seu leque de dúvidas, ele tentava havia dois anos aprender sueco, uma língua que não tinha a menor utilidade em sua vida, a não ser despertar sua profunda curiosidade. Ele procurava insistentemente na internet por dicas e métodos, mas se frustrava alguns dias depois, sem obter resultados. Subitamente, Nicholas parou de andar e olhou para a tela do computador. A busca por uma jogada decisiva se misturava com suas dúvidas. Sentia como se estivesse com febre, tentando formular algum pensamento inteligível. Decidiu então jogar o movimento mais natural naquela posição. 21.d7 Nicholas poderia ter fortalecido a dama e a coluna d movendo sua torre na a1 para d1, mas isso não fazia seu estilo. Avançou o peão, primeiramente, para segurar a torre das pretas na casa d8, enquanto preparava caminho para avançar sua torre até a e1. Lá, além de defender o rei mais de perto, poderia avançar até a última linha para trocar sua peça pela torre inimiga e promover seu peão à dama para dar o xeque-mate. Satisfeito com o lance, retomou sua caminhada, já um pouco mais calmo. Começou então a formular soluções para lidar com cada problema. Poderia deixar o xadrez de lado por enquanto e começar a respirar seu emprego, aprender coisas novas e progredir para ganhar um salário maior, retomando o xadrez ao fim desse processo. Poderia começar a sair de casa mais vezes, frequentar uma balada talvez. Poderia trocar o sueco pelo inglês, que era tão necessário, ou então pelo espanhol que era mais fácil. Racionalmente, tudo lhe parecia claro e razoável, mas não era o suficiente e logo se viu metido novamente em suas dúvidas. E se ele não conseguisse progredir nunca mais no xadrez? Talvez ficasse muito velho. E se ele conhecesse alguém totalmente incompatível com ele? Ou pior, poderia ser acusado de assédio. E se ao trocar de idioma ele perdesse o foco e continuasse sem resultado? Conforme ele se questionava, mais ele acelerava o passo pelo quarto. De tanto andar, acabou se sentindo cansado. Sentou-se na cama e foi tomado por uma lembrança. Era uma memória da época do ensino médio, onde fora um aluno destacado. Lá, havia um rapaz gordo e mais alto chamado Joaquim, que ao lado de outros colegas, lhe tirava sarro e falava mal pelas costas por ser um bom aluno. Um dia, ele foi tomar satisfação e Joaquim se levantou para intimidá-lo. Com a palma da mão, Nicholas segurou-lhe o rosto, como se fosse algo totalmente desprezível, e, antes que a situação piorasse, ambos foram apartados por colegas e o professor. Nesse momento, a memória se transformou em devaneio. Imaginou a si próprio enfrentando Joaquim em um combate físico. Era consideravelmente menor, mas sabia exatamente o que fazer. Pegaria a cadeira vaga e o atingiria com tudo num movimento giratório. O resultado seria horrível, mas é o tipo de desforra pertencente apenas aos recônditos da mente. Ouviu então um zumbido perto da orelha direita e em seguida sentiu a nuca coçar. Era o maldito pernilongo, mais um, como em toda noite naquele verão. Ainda sentado na cama, tentou esmagá-lo com as duas mãos, mas não conseguiu. Levantou-se e tentou persegui-lo, mas o inseto o fez andar em círculos até desaparecer sem deixar rastros. Nicholas olhou ao redor. Examinou as paredes, abriu as cortinas e olhou atrás delas. Também procurou embaixo da cama e não o encontrou. Em seguida ele teve uma epifania: e se simplesmente não respondesse a nenhuma de suas dúvidas? A partir desse pensamento, Nicholas examinou suas memórias por um tempo e chegou à conclusão de que não tinha informações suficientes para resolver qualquer um dos problemas. Além disso, percebeu que estava em uma posição muito confortável. Conquistara estabilidade em seu emprego e não precisaria de nenhuma habilidade nova naquele momento. E com o dinheiro que estava ganhando, mesmo que pouco, poderia guardá-lo para um projeto maior. Lorena não era a única garota que conhecera na vida e poderia muito bem encontrar outra no futuro, até mesmo por acaso. Já quanto aos idiomas, talvez ele devesse dar um tempo no sueco, no inglês, no espanhol ou qualquer outra língua que fosse e deixar todo o resto de lado por enquanto, até ter uma ideia mais clara do que fazer. Mas e quanto ao xadrez? Nicholas reconheceu que o maior entrave em seu aprendizado era si próprio. Sua incapacidade em progredir era antes fruto maior de seu estado de dúvida, que o consumia. Se deixasse tudo aquilo de lado por enquanto, certamente não se sentiria mais tão perturbado e sua mente poderia ter um descanso. Assim, poderia pensar melhor sobre o que fazer com sua vida, até mesmo se continuaria com esse sonho ou não. Nesse ínterim, ele poderia fazer alguma outra atividade qualquer, mas interessante, que o divertisse e relaxasse um pouco de tantas tensões. Quanto à partida, seu tempo havia acabado e ele perdeu. Na tela, o site informava que ele tinha diminuído seu rating em 8 pontos, mas ao invés de se sentir frustrado, como de costume quando perdia, fechou seu laptop e sentiu um alívio. Andou então até a estante, onde, no meio de todos aqueles livros sobre enxadrismo, encontrou uma edição de “A Laranja Mecânica” de Anthony Burgess, que ganhara em um Natal atípico e nunca lera. Pegou o livro e pensou que era o momento perfeito para pagar essa pendência. Antes que se sentasse na cama, olhou para a esquerda e viu novamente o pernilongo na parede. Aquele pernilongo gordo e satisfeito depois de tê-lo consumido. Deixou rapidamente o livro sobre a cama e com a mão direita deu um estrondoso tapa na parede. Examinou a mão e viu os restos do pernilongo. Em seguida olhou novamente para a parede, vendo um pequeno rastro feito com seu sangue.

FIM

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