Por: Raphael de Jesus
“Eu relutei muito para me posicionar. Não sei se por conformismo ou por medo, mas há muito tempo cansei de ficar calada.
Igualdade é um bem sagrado e hoje está mais ameaçada do que nunca. Nesse momento é preciso mobilização, porque só assim poderemos ter o mundo que queremos, com mais diversidade, respeito e democracia.
O bramido publicado no LinkedIn, de autoria de Berenice de Freitas, era o desabafo de um espírito jovem cansado de sentir medo. Em sua foto do perfil, a moça de olhar perdido e corte de cabelo pixie com madeixas roxas, ostentava um selo circular contendo a inscrição: “publicitária antifascista‘.
Desde o início da pandemia, Berenice tentava equilibrar o regime de trabalho home office com o emocional fragilizado pela preocupação, mas para ela, nada disso se comparava ao que acontecera com George Floyd. Todo o seu círculo social se sensibilizara: a namorada com quem morava junto, os funcionários da agência onde trabalhava, seus antigos professores e colegas universitários, os jornalistas que acompanhava, as celebridades que seguia e os políticos em que votava, um contingente unido em repúdio, como em uma catarse coletiva. Por ser lésbica, temia ter o mesmo fim que o dele, ou então ter de relegar-se a uma vida marginalizada.
Dois meses depois, a pandemia confiscou-lhe o emprego. Sua mente se tornou um caldeirão de preocupações: receou que as crises de ansiedade voltassem, pois fazia dois anos que parara com as sessões de psiquiatria, por falta de fundos.
Absorvido o baque, ela levou um tempo considerável mandando mensagens a seus contatos no WhatsApp e enviando currículos a novas agências em busca de oportunidade. Ao terminar, ela passou o resto da tarde observando a vida dos outros no LinkedIn, em suas dores e alegrias.
À noite, Kelly, sua namorada, chegou do trabalho. Ela era auxiliar administrativa em uma fábrica de cabos de fibra ótica e estava estressada pelas altas pressões nesse período turbulento. Mal cumprimentou Berenice e foi logo para o banho.
Assim que ouviu a fatídica notícia, ela sentiu que precisava de outro banho - de descarrego. Berenice sugeriu que poderia aplicar para o auxílio emergencial do governo, mas isso não seria o suficiente para as demandas da casa, e isso deixou a namorada com os nervos à flor da pele. A publicitária tentou acalmá-la, prometendo que se recolocaria em breve.
“Mas e se não conseguir?”
“Você não está sendo otimista”
“Isso se chama realismo”
“Ou histeria, o que dá no mesmo”.
A resposta ríspida desencadeou a fúria da companheira, que despejou um estoque de insatisfações e confissões, revelando uma coleção de medos, do despejo, da fome, das humilhações e do vírus.
Berenice preferiu evitá-la e buscou refúgio na janela. Já Kelly, num soslaio, olhou para a cozinha e viu uma pilha imensa de louça acumulada da noite anterior.
“O que você quer é viver as minhas custas!”
A reclamação atingiu Berenice como uma lança e as duas se digladiaram em um turbilhão de acusações até passarem ao conflito físico. Após alguns tapas e puxões de cabelo, Kelly pegou uma faca e passou a ameaçá-la com estocadas. Berenice, mesmo sendo ateia convicta, no calor do momento pediu pelo amor de Deus que ela parasse.
Elas ficaram nessa negociação por algum tempo, quando Kelly marchou até o quarto, arremessando a faca no sofá no meio do caminho. Ela pegou tudo o que podia e enfiou na mochila. Ao sair de casa, foi questionada por Berenice, se ela não temia infectar os pais, já que era o único lugar em poderia ir, mas ela partiu mesmo assim.
Por um momento, Berenice pensou em pegar a faca e dar cabo de si, mas a briga a deixou nostálgica. Lembrou-se de seus pais, que deixara em Toledo, mas não poderia recorrer a eles, pois não se falavam havia quatro anos. Restou recordar sua infância e isto lhe pareceu ser o único momento imaculado de sua vida.
Então, Berenice ligou o Spotify no último volume e ouviu pelo resto da noite canções de Aerosmith, Morrissey e Nazareth, que à tenra idade, seus pais a embalaram. A jovem chorou até de madrugada, quando suas lágrimas foram vencidas pelo sono.
FIM
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